Numa meia-noite na cidade de Heavenville, avistar-se-ia
no céu, um tanto quanto nublado, um número incomum de corvos sobrevoando o
povoado. John, um dos poucos (e restantes) habitantes, morava sozinho naquela
casa amaldiçoada. Era uma habitação antiga, fruto de nove gerações da família
King: possuía calabouços, esconderijos secretos e um grande sótão. Era
conhecida como A casa vermelha (não que John aprovasse).
O pai de John, o bêbado William, cometera suicídio por
causa do poker há pouco mais de 13 anos. Naquele dia assustador, chegara em casa
depois de mais uma partida. Perdera tudo! Embriagado como estava, acordara a
família a fim de se despedir. Logo após, atirara na própria cabeça. John, com apenas
oito anos, presenciara tudo. Culpava-se pelo acontecido e temia o dia em que a
tragédia pudesse se repetir (será que aconteceria?).
...
No auge dos seus 18 anos, conhecera Anne. Casara com
ela aos 22 e dessa união dois filhos foram concebidos, Paul e Brian. Tudo
parecia perfeito, até que em uma tranquila noite o pior estava por vir: um
criminoso que pretendia assaltar a casa, fora de si, decapitara toda a sua
família e John, ainda no trabalho, nada pode fazer para evitar. Após dois anos
do acontecido, a vingança e a culpa aumentavam a cada dia. Em uma manhã tentara
repetir o feito de seu pai, mas a lembrança daquele dia nunca saíra de sua
cabeça e o medo e a vergonha de reproduzir tal barbaridade não o fez concluir a
loucura. Cresceu e viveu naquela casa mesmo depois de casado, mas a vontade de
demoli-la era tamanha. Todas as noites sofria com temerosos pesadelos, tanto
com o pai quanto com sua esposa e filhos. E a cada dia se intensificavam mais...
Naquela noite nebulosa, batidas na porta o
sobressaltaram. Levantou-se a fim de averiguar o desconhecido. Alguém do lado
de fora apenas assobiou. John estremeceu. Temia descobrir quem ou o que era.
Abriu a porta e avistou apenas a escuridão da noite, tranquila e serena. O
grasnar dos corvos foi inevitável de ser ouvido. Ao fechar a porta estancou de
imediato com o vislumbre à sua frente. Um estranho incapaz de se decifrar,
homem ou mulher, com uma vestimenta negra, pairava diante de John. Caminhando
em sua direção se apresentou sem pronunciar palavras. John amedrontado se
afastava lentamente na direção oposta. Tentou subir as escadas, mas em vão: como
que sobrenaturalmente, o estranho surgiu no primeiro degrau. Com os olhos
esbugalhados, John apenas esperava. Uma gargalhada grotesca, mas assustadora,
saiu daquilo que o atormentava. Seu desmaio foi inevitável.
Poucos minutos se passaram e ao acordar alarmado,
torcia por ter sido só mais um pesadelo. Porém, o real o esbofeteou em cheio. O
estranho ainda se encontrava ali. De imediato uma voz rouca e aterrorizante se
fez ouvir. Seu nome causou espanto e perturbação: o anjo caído se encontrava
ali. Ao se indagar sobre o que estava acontecendo, a voz de John se fez ouvir. O
Príncipe das Trevas por fim o explicou: sua culpa e vingança crescia tanto em
seu coração que o tornou um receptáculo impecável.
Logo, a persuasão Dele o deixara intrigado. Ao
afirmar que desejaria apenas viver como um mortal, John se espantou. Então, a
criatura logo indagou: “Eu era um anjo do Senhor, mas por amá-lo demais fui condenado.
Eis, então minha penitência...”. John apenas ouvia sem nada dizer. A besta fera
precisava de uma resposta: sim ou não. Mas, para quê? John seria vingado, mas
precisava ajudar. E ser o Seu receptáculo era o trato. John logo cedeu. O
sorriso do mentiroso rapidamente se apercebeu. Raios cortaram o escuro céu; aves
noturnas piavam estridentemente e uma forte luz branca se iluminava naquele
aposento.
Alguns meses se passaram e os poucos habitantes da
cidade já estavam exterminados. Essa era sua diversão: matar lentamente a fim
de se saciar com os gritos de pavor e de dor. John ainda habitava aquele corpo,
mas somente inconscientemente. Presenciou a morte de seus velhos conhecidos implorando
por suas vidas mas, assim como na tragédia de sua família, nada pode fazer. Seu
corpo aos poucos foi se deteriorando e a nova morada d’O inimigo a cada dia
perdia seu valor. Como num clique, o senhor das trevas deixara de habitar aquela
carcaça. John, ainda vivo, presenciou pela primeira vez os olhos vermelhos do
vindo da luz. A risada maldita fez seu corpo estremecer. E dos seus lábios
apenas pode decifrar: “Mentiras”. John apagou. Morto!
Naquela mesma noite acordara deitado em sua cama
macia, naquela velha casa que pertencia aos seus antepassados. Com medo,
decidira abandonar a mansão. Contudo, ainda era noite e, inexplicavelmente, repetidas
batidas voltaram a assombrá-lo. Apavorado, rezou. Era devoto quando criança.
Agora, rezava como o menino de antes. Ouviu um assobio que o arrepiou até a
alma, mas consciente do terror que passara antes, apenas rezou e chorou e logo
voltou a adormecer. O mal se fora.
Na manhã seguinte, uma enorme claridade iluminou
seu aposento. Acordara. E dias se passaram sem ter ao menos um pesadelo. Todo o
mal que habitava seu coração aos poucos se dissipara. E o anjo das trevas de
longe apenas o observava. Ideal não o era. O macabro pertencia ao anjo caído e
o coração humano apenas possuía mínima parcela. O inconsciente aterrorizava,
mas a razão o impedia.